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    CENÁRIO NO QUAL A HISTÓRIA É CONTADA - DA IDEALIZAÇÃO À REALIZAÇÃO

    A batalha para eu me firmar profissionalmente como artista é longa, árida e insistente. Sonhava em rodar estradas e batendo o bumbo anunciar o início da função - eu consegui!

    Assim como na obra do genial cineasta Federico Fellini – com o qual muito me identifico, o circo vive presente no meu imaginário. Ao pensar a encenação desse espetáculo, voltaram lembranças da infância. Aos 06 anos de idade, eu e meu irmão Fernando – hoje professor, montamos no pátio dos fundos de casa um circo, com lençóis e cabos de vassouras. As funções eram prestigiadas por nossos pais e vizinhos. Além do meu show de mágicas – na foto ao lado, ensaio o meu número, tinha ‘palhaçadas’, peripécias, pantomimas e não faltava o show das “águas dançantes”, regadas pela mangueira de molhar o jardim, sob a luz de lanternas. Num toca-discos portátil, um ‘vinil’ tocava os sucessos do palhaço Carequinha ou clássicos de Tchaikovski e Mozart em ritmo de bolero, preferências musicais de nossa mãe Lizete.

    Gostava também de “armar a lona” em miniatura com isopor, cartolina e varetas de um jogo; o toldo era de papel celofane transparente. Hoje revejo essa imagem de forma poética. Talvez a lona do cirquinho fosse transparente para que do centro do picadeiro eu enxergasse o infinito, e olhando de fora para dentro sonhasse para aquela mini arena uma série de possibilidades. Apenas divagação… Na minha memória afetiva encontrei a inspiração para a materialização desse sonho: construir um cenário que proporcionasse à plateia uma viagem pelos infinitos caminhos da imaginação a partir de um módulo compacto e multifuncional, prático para lidar, e que coubesse em uma sala de aula ou no palco de um grande teatro, emocionando o público no decorrer da apresentação, surpreendendo com efeitos especiais.

    Cadeira e escada criadas Santos Dumont. 

    O palco de “Santos Dumont Está Vivo!” propõe uma ambientação de teatro mambembe e é afetivamente inspirado na ópera ”I Pagliacci” – de Ruggero Leoncavallo. A narrativa acontece em um pequeno circo – também uma biblioteca imaginária, uma passarela circular que poderia ser vista como sendo um relógio, demarcando a trilha percorrida pelo tenaz ‘Leitor’ em busca do genial “Inventor”.

    Ao centro, uma cadeira com mais de dois metros de altura retrata a face de designer de Santos Dumont – considerado pelo arquiteto e artista plástico Guto Lacaz – especialista na obra do ‘Aviador’, com um dos pioneiros nessa arte. Desenhou e mandou produzir cadeiras com o objetivo de promover ‘jantares nas alturas’, proporcionando a seus amigos e conhecidos sua sensação nas ascensões em balões e dirigíveis.

    Para que eu pudesse alcançar o assento durante o espetáculo, adaptei uma outra obra do “Petit Santôs”: a escada de meios degraus. Famosa por ‘obrigar’ os convivas a entrar em sua casa “A Encantada” sempre com o pé direito, no município de Petrópolis, Rio de Janeiro.

    Ao observar o formato dessa cadeira, notei que se parecia muito com a estrutura interna do ‘14 BIS”. Criei um híbrido que durante a apresentação vai se transformando até chegar ao avião num ‘gran finale’ apoteótico.

    Cordões de lâmpadas incandescentes, alternados entre flâmulas vermelho sangue, aquecem o clima. Pequenos refletores de led coloridos posicionados em lugares estratégicos acentuam a iluminação de algumas cenas e equilibram a temperatura na encenação que acontece à luz natural do lugar – como se estivéssesmos numa beira de estrada instalados em uma carrocinha mambembe e o público sentado em bancos coletivos rústicos de madeira crua.

    Foram somados à estrutura cênica central um telão – que recebe a projeção de imagens complementares à apresentação, e um grande biombo coberto por cortinas vermellhas complementa e equilibra a ambientação, tendo em frente um gramofone, um baú e um meio corpo de mulher trajado como “Carmen” da ópera de Georges Bizet.

    E acredite, um passarinho me contou que tem ainda um “14 BIS” no escondido no cenário. Será realidade ou imaginação literária?

    Acima, à esquerda, capa do disco de uma das mais antigas gravações tendo no papel de Cânio o grande Beniamino Gigli. À direita acima, foto de uma encenação atual de “I Pagliacci” numa interpretação arrebatadora de um dos maiores tenores em atividade, Jonas Kaufmann. A seguir, vemos uma cena de “Palhaços” e à direita, de “La Strada” com Giulietta Masina e Anthony Quinn nos papeís principais. Os dois últimos, filmes dirigidos por Federico Fellini.

    Ópera “Pagliacci” – de Ruggero Leoncavallo, com Teresa Stratas e Placido Domingo nos papéis principais. Um filme de Franco Zefirelli.

    Trailer do filme “La Strada” de Federico Fellini.

    “Santos Dumont Está Vivo!” foi assistido pelos alunos da
    Educação Infantil à oitava série do Ensino Fundamental.
    O espetáculo sobre a vida de Santos Dumont é um encontro
    com o inusitado, com a surpresa, com a fantasia.
    A estrutura cenográfica oportuniza que muitos espaços
    aconteçam dentro de um único espaço.

    A ‘roda do tempo’ é a referência para a movimentação do ator que,
    transitando em diferentes dimensões, convida-nos a viajar consigo.
    A peça é rica em cores e luzes, e o ator interage com a platéia.
    O que encanta e emociona as crianças e jovens.

    A história de Santos Dumont é contada de forma brilhante!”

     

    Lorena Beatriz S. Santa Maria

    Diretora E. E. E. F. Gonçalves Dias

    OS SALTIMBANCOS E AS FEIRAS - CONCEITO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO CENÁRIO

    Depois que os grandes circos romanos foram abandonados, por muitos anos a Europa não viu nada que pudesse se chamar de um espetáculo circense ou mesmo simplesmente de um espetáculo, não importa se de circo, teatro ou dança. A Europa dos primeiros séculos da Idade Média não era o melhor palco para nenhum artista. Mas, pouco a pouco, a própria Igreja vai incentivar a realização de autos e Mistérios, espetáculos que contavam a vida de Cristo e dos santos, teatralizavam a Paixão, a vida dos Santos e passavam ensinamentos moralizantes. No início, eram pequenas cenas representadas dentro das igrejas. Mas a coisa foi crescendo, tomou as ruas e, ao final, envolvia toda a cidade. As Guildas – associações profissionais passaram a se responsabilizar pelos espetáculos e cada uma queria se mostrar mais rica e competente, suplantando as outras. A cidade medieval esperava ansiosa o momento em que seria o palco de um evento de grandes proporções e os espetáculos começam a atrair gente de outros lugares, a promover o comércio e a venda de produtos da região. Esse fenômeno artístico acontece estreitamente ligado ao crescimento das feiras. Desde sempre os espetáculos ajudaram a movimentar a economia. A feira de Saint Denis, instituída por Dagoberto em 629, logo virou ponto de encontro de artistas de todas as artes e habilidades: dançarinos de corda, funâmbulos, volantins, malabaristas, jograis, trovadores, adestradores de animais, pelotiqueiros, músicos, domadores de ursos, dançarinos, prestidigitadores, bonequeiros e acrobatas. Os artistas dispersos vão se reencontrar nas estradas que ligam uma feira à outra. Nos séculos XII e XIII, as feiras tornam-se o principal instrumento de troca, transformando a economia e desenvolvendo as relações entre os povos. A feira de Saint Germain foi criada em 1176 e, depois dela, surgiram a de Saint Lazar mais tarde transformada em Saint-Laurent , a de Saint – Barthélemy, a de Lyon, de Bruges e, logo, as de Sturbridge e Southwark, na Inglaterra; Franckfurt, Colônia, Nuremberg e Leipzig, na Alemanha; Florença, Nápoles, Veneza, Milão e Gênova, na Itália; Medina, na Espanha, e Nijni-Novgorod, na Rússia. Toda a Europa tinha suas feiras. Havia as de inverno e as de verão. De início, elas duravam algumas semanas, mas logo passaram a durar meses. Especiarias do oriente, jóias, verduras, legumes, grãos, remédios miraculosos, roupas, tecidos, sapatos, vacas tudo estava à venda. Circulando por ali, toda uma fauna de gente que vinha vender, comprar ou simplesmente olhar aquele movimento inaudito.

    Para chamar a atenção no meio da balbúrdia, armava-se um pequeno tablado tipo um banco e, em cima dele, eram realizados espetáculos. Vem daí o termo saltimbanco, saltare in banco. É a mesma origem de banqueiro também, pois era em cima de bancos que os cambistas trocavam moedas, avalizavam empréstimos e vendiam promissórias. No início bastava um banco, depois um tablado com cortinas e, mais tarde, nas feiras maiores, foram sendo construídos verdadeiros teatros. O mais interessante nos espetáculos de feira era a variedade de opções oferecida ao público. Numa barraca apresentava-se um cavalo de seis patas capaz de realizar inúmeros saltos. Na outra, macacos e cachorros adestrados. E anões vindos da Holanda, venezianos fortes, dançarinos na corda tesa, marionetes, leões, equilibristas, contorcionistas, magia e prestidigitação, funâmbulos atravessando a feira em grande altura, um rinoceronte… Tudo era possível de ser admirado em troca de alguns tostões.

    Os primeiros teatros de feira surgiram no final do século XVI. Ao que tudo indica, os espetáculos eram descosturados, uma sucessão de cenas sem ligação e bastante repetitivas. Uma verdadeira revolução ocorre quando, em 1678, com o espetáculo “Les forces de l’amour et de la magie”, começam a ser montadas peças em atos com atores de carne e osso. Antes disso, os espetáculos se assemelhavam mais a uma sessão de variedades ou eram feitos por bonecos. “Les forces de l’amour et de la magie” é um interessantíssimo espetáculo teatral cômico, com música, dança e acrobacia, ou, como disseram os autores, um divertimento cômico, representadopelos acrobatas (sauters) da trupe dos senhores Maurice Allemand e Allard Parisien. A propaganda explica que se trata de uma trupe composta por 24 acrobatas de todos os países, “os mais ilustres que jamais se apresentaram na França”. A moda pega e novas trupes são formadas montando espetáculos que não se preocupam com as regras aristotélicas e que mesclam diabos saltadores, o mago Merlim, Arlequins e Polichinelos sem nenhum pudor. O sucesso é enorme e a inveja dos teatros oficiais também. Ser artista nunca foi fácil. Músicos, pintores, escultores, atores, bailarinos e outros que tais viviam da dependência dos grandes senhores. Todos buscavam um mecenas, um protetor. Na Europa renascentista, as companhias de atores disputavam os privilégios de reis e nobres e, quando os conseguiam, não queriam saber de concorrentes. O teatro das feiras ameaçava essa proteção tão duramente conquistada.

    Em 1680, a Commedie Française conquista o privilégio de ser a única companhia autorizada a representar em francês. Uma intensa luta se estabelece por quase dois séculos. Os teatros oficiais conseguem leis que garantem que ninguém mais possa representar comédias em atos, nem utilizar diálogos em cena. A resposta dos teatros populares de feira é ir burlando as regras e enganando as autoridades policiais. Os espetáculos não podem ser feitos em atos? Surgem as peças de cenas curtas. É proibido dialogar? Inventam o monólogo. Criam cenas em que um personagem fala e o outro responde de fora de cena. Criam também a genial estratégia de escrever as falas em cartazes e é o público que faz a leitura aos gritos. A necessidade havia criado o teatro de participação popular… E o sucesso aumenta cada vez mais. Como costuma acontecer em todos os tempos com os inúmeros tipos de censura, as proibições acabam servindo de incentivo à criatividade. Nesse processo de superar as restrições impostas para manter velhos privilégios, alguém acaba tendo a idéia de voltar aos ditirambos gregos e cantar os textos, inventando assim a Ópera Cômica. Esta luta entre os artistas privilegiados pelo rei e pela nobreza e os artistas das feiras acaba promovendo a Ópera e também a arte da pantomima, elevando a expressão mímica a um nível técnico e artístico jamais alcançado em outro período da história da arte. Jean-Louis Barrault definiu a mímica como a “linguagem do povo a quem o poder retirou a palavra”. A Assembléia Nacional – órgão dos revolucionários franceses – reconhece, em janeiro de 1791, o direito de todo cidadão de construir um teatro e de nele apresentar o espetáculo de sua escolha. Mas, apenas em 1864, a cena francesa fica realmente livre de qualquer tipo de proibição, garantindo a liberdade de criação.

    Fonte: “O Elogio da Bobagem” – Autora: de Alice Viveiros de Castro

    Mancuzo, pronto para entrar em cena, faz um tour pelo cenário de Santos Dumont Está Vivo!” nos instantes que antecedem o início das apresentações no município de Segredo – RS. No vídeo aparecem o diretor do Instituto Mix Sobradinho – RS, Ricardo Koheler e seu gerente Alan Silva. Esta importante escola foi nosso principal parceiro apoiador na temporada Centro Serra do Rio Grande do Sul.

    A CONSTRUÇÃO DO CENÁRIO - UM PROCESSO PRÁTICO E ECOLOGICAMENTE SUSTENTÁVEL

    O processo de elaboração e construção do cenário de “Santos Dumont Está Vivo” lembra a forma de agir do cientista e literato, tema de nosso espetáculo. O “Pai da Aviação” tinha o hábito de construir seus projetos com peças descartadas e, a priori, sem futura utilidade, dando uma nova finalidade prática ao que encontrava pelo caminho. Foi dessa forma que viabilizamos a ambientação cênica do espetáculo, usando de madeiras, ferros e tecidos descartados e passíveis de reutilização.

    A idealização e início da produção ocorreram a partir da necessidade de colocar em cena o “14 BIS”. Foi através do então diretor do Centro Cenotécnico do RS, Marcelo Almeida, um velho amigo, que conheci o Sr. Altair Claro, mestre na arte da marcenaria cênica. Extremamente gentil, generoso acolheu minha necessidade e começamos a conversar sobre a forma possível de viabilizar o projeto. Queria colocar em cena uma reprodução do “Mais Pesado que o Ar” que justificasse sua grandeza histórica, mas precisava de algo prático para a itinerância. Nosso desafio foi pensar a melhor forma de termos um imponente “avião” no palco e que para viajar fosse fácil de transportar. Foi “Seu” Altair que encontrou a solução: fazer as asas retráteis, assim como varais tipo “sanfona”, muito utilizados em apartamentos. Excelente ideia, teríamos um cenário que se transforma causando grande impacto nas plateias; verdade esta que vem se confirmando nesses longos anos em cartaz.

    Meu processo criativo é orgânico. Sinto necessidade de me manter observando, produzindo, “questionando” a forma como me exponho ao público. Com o “14 BIS” pronto, as coisas foram acontecendo, novas necessidades surgindo. Decidi retratar o conceito mambembe através de um mini circo que também seria uma biblioteca, facilitando dessa forma contar essa história. O piso e as estruturas de cercamento, foram construídos por um conhecido, Gilberto Thomas, que nos doou as tábuas e a meu pedido se propôs a posicionar o tablado em “perspectiva” – uma rampa no formato redondo. Mais um grande desafio se impôs: poder caminhar em cima desse tablado.

    Assim como Santos Dumont, alcançamos nosso objetivo após várias tentativas – erros e acertos. Para garantir a segurança para o ator e possíveis participações dos espectadores, entram em cena os arquitetos Quil Cevallos e João Luís Ferreira, um casal de amigos voluntários nessa empreitada. Foi por intermédio deles que conheci o Celso e o Emerson Trapp – exímios marceneiros, pai e fillho. Através de uma reestruturação projetada e executada por essa equipe, o cenário ficou seguro.

    Para nos adequarmos ao conceito de teatro mambembe, não utilizamos os habituais equipamentos de iluminação, diminuindo consideravelmente gastos desnecessários com energia elétrica, por utilizar a luz natural dos espaços abertos ou reservados.